domingo, 29 de maio de 2016

Pais vão poder guardar ADN dos filhos. E não é para recordação

Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas acredita que esta ferramenta pode ajudar as investigações. Todos os anos desaparecem 4000 pessoas no país, a maioria menores.

Há 17 anos, Rui Pedro,então com 11 anos, foi levado de carro por um amigo da família para se encontrar com prostitutas. Foi a última vez que foi visto. Em 2013, o motorista, Afonso Dias, foi absolvido por fala de provas, mas dois anos depois acabou condenado a três anos de prisão pelo crime de rapto. Foi a única pessoa condenada naquele que é um dos casos de desaparecimento mais marcantes no passado recente. Rui Pedro, que hoje teria 29 anos, nunca apareceu. Patrícia Cipriano, presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas - que ontem apresentou um kit para os pais recolherem o ADN dos filhos -, acredita que se este tipo de ferramenta estivesse disponível, o caso de Rui Pedro, mas não só, poderia ter tido outro desfecho.

O kit, semelhante aos que nos últimos anos se tornaram populares nos Estados Unidos - tendência atribuída também à divulgação que séries como "CSI" fizeram das ciências forenses -, vai estar à venda a partir de 1 de junho nas lojas Pingo Doce e Bem-Estar. Inclui uma zaragatoa estéril para recolha de ADN, um par de luvas, um dispositivo de armazenamento capaz de preservar amostras durante 20 anos, tinta para recolha de impressões digitais dos dez dedos e um formulário para as imprimir.

Patrícia Cipriano explicou ao i que o projeto, uma parceria com a GNR e com o apoio de um perito da Interpol, foi preparado ao longo de três anos e vem responder a uma preocupação dos pais que procuram a associação: ajudar a tornar as investigações mais célebres. "Numa situação de desaparecimento, é pedido à família escova de cabelos ou escova de dentes, que podem ser usadas por muitas pessoas. Com este kit, terão amostras puras", explica. Em teoria, numa situação em que uma criança tenha passado pelo carro de alguém que até seja ligado, numa fase precoce, ao desaparecimento - como no caso de Rui Pedro ., será mais fácil apurar ligações.

Estima-se que em Portugal haja 4000 desaparecimentos por ano, a maioria de menores. Segundo o último balanço da PJ, em 2015 foram comunicados 1611 desaparecimentos de menores só à Polícia Judiciária. A Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas arrancou em 2007 e, desde então, interveio em 164 casos. Os raptos por desconhecidos são uma minoria e Patrícia Cipriano relata que a maioria são fugas - em particular de adolescentes - e subtração parental, em que o pai ou a mãe foge com o filho à revelia do outro progenitor e a criança chega a ser obrigada a usar disfarces. Já nas situações de rapto, muitas vezes estão envolvidas pessoas amigas ou conhecidas da família. Em todos os casos, a responsável considera que este kit será uma ajuda e pode ser encarado como "seguro" para os pais, que devem ensinar aos filhos outras regras de segurança como saberem a sua morada, não abrirem a porta a ninguém ou saber como contactar os pais e a polícia. A responsável admite que alguns pais poderão ver no kit uma recordação, mas salienta que não há qualquer uso recreativo do projeto. Outra opção será a utilização por adultos, caso queiram ter este registo para uma situação de acidente ou catástrofe natural.

E a base de ADN do estado? O kit estará à venda por 24,90 euros e, para já, estão disponíveis 400 unidades. As lojas não terão qualquer margem e a associação tem uma receita de dois euros por cada kit vendido, que usará para financiar as suas atividades e apoio jurídico às famílias, explica a responsável. Não há um processamento do ADN: caso venha a ser necessário a família entrega o cartão às autoridades.

Sendo uma ferramenta considerada útil, o Estado não deveria assegurá-la? Cipriano reconhece que algumas famílias não podem fazer o investimento e que, idealmente, esse trabalho poderia ser feito pelo Estado, designadamente na inscrição na Base de Dados de Perfis de ADN, que aceita voluntários.

António Lacas, presidente do conselho de fiscalização da Base de Dados de Perfis de ADN, criada em 2010, testemunha que neste momento só há quatro voluntários na base além dos 7121 resultantes de investigações e condenações.

O responsável admite que a inscrição na base de dados poderia ser uma alternativa e até permitiria dar maior uso a esta ferramenta pública, que será mais útil quanto mais registos tiver, mas reconhece que, atualmente, a legislação não é atraente para os cidadãos. O registo voluntário pressupõe que os perfis podem ser sempre usados nos cruzamentos em investigações criminais e, além disso, têm custos. Nestes casos, a perícia de identificção de ADN tem se ser pedida a título particular ao Instituto de Medicina Legal e custa 400 euros.

Lacas revela que o conselho já propôs alterações à lei ao parlamento. Na opinião do responsável, deveria ser facultativo autorizar o uso do perfil voluntário nas investigações criminais. Caso as pessoas aceitassem que o seu perfil fosse considerado em investigações, o responsável entende que o processo devia ser gratuito. Lacas explica que, no caso concerto do kit agora disponibilizado, há outra dificuldade: a inscrição de menores a título voluntário só é possível quando se trate de familiares de pessoas desaparecidas.

O responsável admite que a inclusão de menores, se essa for a vontade dos pais e se agilizar investigações, também poderia ser algo a considerar para o futuro da base pública. Certo, para já, é que continua a haver uma subutilização até por parte de adultos. Estava previsto que a base tivesse 5 mil novos perfis por ano e só tem 28% do previsto de ADN 16 pessoas desaparecidas e 15 familiares, o que António Lacas reconhece que, tendo em conta o volume de casos no país, é pouco.
0

0 comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.