sexta-feira, 29 de abril de 2016

Beyoncé faz da experiência pessoal um ato político

"Are you cheating on me?", pergunta Beyoncé logo ao início de Lemonade, o filme, pouco antes de ouvirmos a canção Hold Up, enquanto a vemos a passear de taco de basebol na mão a destruir tudo por onde passa, à medida que canta "They don't love you like I love you". Lemonade é não só um filme que se estreou no último sábado à noite no canal norte-americano HBO, mas também o novo álbum da cantora norte-americana, lançado de surpresa, tal como o seu antecessor, Beyoncé (2013), desta vez no serviço de streameing Tidal (entretanto, já foi disponibilizado no iTunes tendo, em Portugal, entrado diretamente para o primeiro ligar, enquanto a edição física chega a 6 de maio). Como aquela pergunta inicial deixa antever, este é um disco no qual Beyoncé supostamente aborda as alegadas traições do marido, o rapper Jay Z, mas essa experiência individual (ficcionada ou não) é somente o mote para refletir sobre as lutas que as mulheres afro-americanas enfrentam na sociedade norte-americana.

Ouvir e ver este Lemonade e analisá-lo somente sob a perspetiva tabloide dos trâmites da relação entre Beyoncé e Jay Z seria profundamente redutor para a dimensão desta obra. Até porque o filme ao qual este novo conjunto de canções está associado posiciona esta narrativa do suposto adultério num contexto muito mais abrangente. Ao falar da sua luta em manter intacta a sua relação e a sua família, Beyoncé está também a abordar a marginalizão das mulheres afro-americanas.

Aliás, durante a ríspida Don't Hurt Yourself, uma inusitada colaboração com Jack White na qual se ouve um sample de When the love Breaks, dos Led Zepplein, a própria Beyoncé recita parte de um discurso de Malcolm X: "A pessoa mais desrespeitada na América é a mulher negra. A pessoa mais negligenciada na América é a mulher negra". Com isto Beyoncé aborda o facto das angústias e dos medos dos negros e, em particular, das mulheres negras, serem constantemente silenciados e denegridos, fazendo da sua demonstração de raiva no espaço público um ato político, além de dar visibilidade àquelas que têm sofrido tudo isto na pele. Basta lembrar que durante a canção Forward (outra colaboração inesperada, desta vez com James Blake) aparecem no filme Sybrina Fulton e Lesley McSpadden, mães de Trayvon Martin e Mike Brown, respetivamente, dois jovens que morreram vítimas dos abusos policiais nos Estados Unidos, segurando o retrato dos seus filhos. O filme conta ainda com as participações da tenista Serena Williams e das atrizes Quvenzhané Wallis e Amandla Stenberg.

Se parte deste Lemonade é um processo catártico face à alegada traição de Jay Z que passa pela ira ("Today I regret the night I put that ring on", canta em Sorry) mas também pela reconciliação ("They say true love's the greateste weapon to win the war caused by pain, but every diamond has imperfections, but my love's too pure to watch it chip away", de All Night), reconciliação essa que nos é apresentada como uma escolha deliberada e que vem de um ligar de força individual, outra parte de Lemonade acaba por fazer um aponte com o contexto social dos Estados Unidos dos nossos dias, contexto esse que se prende com os muitos casos de violência policial contra negros que têm vindo a público e que deram origem a várias revoltas raciais.

Formation, canção que fecha Lemonade, tendo sido revelada em fevereiro quando ainda não se imagina que viria um novo álbum, é refleco disso, tendo na altura causado grande controvérsia porque quando Beyoncé interpretou o tema ao vivo pela primeira vez, no Super Bowl, fez-se acompanah por um conjunto de bailarinas vestidas como os Black Panthers. O vídeo é, simultaneamente, uma celebração das mulheres negras sulistas (Beyoncé é natural do Texas) e uma crítica à brutalidade policial, incluindo referências ao furacão Katrina, à cultura crioula do Louisiana, além de contar com intepolações de duas figuras de Nova Orleães, o rapper negro e gay Big Freedia e a personalidade do YouTube Messy Mya, uma referência para as comunidades quer locais, que foi assassinado em 2010.

Antes de Formation ouve-se neste Lemonade uma outra canção que vai ao encontro destas temáticas, Freedom, cuja participação do rapper Kendrick Lamar dá a este disco um caráter ainda mais contestatário e politizado.

Além das mensagens políticas e da autobiografia emocional que é delineada por Beyoncé sob a sua perspetiva e nos seus termos, e não da imprensa tabloide, dando-lhe um caráter universal que estimula a identificação do ouvinte com estas experiências, Lemonade é, musicalmente, um disco diversificado, o que se espelha na lista de colaboradores, como Jack White, James Black, The Weeknd, Kendrick Lamar, Father John Misty, Diplo, Ezra Kownig (dos Vampire Weeknd), além de fazer referências a temas dos Animal Collective, Yeah Yeah Yeahs ou OutKast.

Para todos aqueles que ainda duvidaram de Beyoncé como uma força cultural, muito além do mundo pop, Lemonade é o álbum que reflete essa influência exemplarmente.
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